"O
problema das cesarianas no Brasil tem quase infinitas bases. Vamos a algumas.
Pagamento
por produtividade: muitos plantões médicos são remunerados
por produtividade, ou seja, se nascer no plantão, a grana vai para aquele
plantão. Se não nascer antes de terminar o plantão, se passar para o plantão
seguinte, quem ganha o valor do parto é a equipe do plantão seguinte. O médico
que passou o dia ali aguardando o parto e resolveu não operar, não ganha nada.
"Limpeza
do plantão": prática que ocorre em muitos hospitais, onde o obstetra opera
todas as mulheres antes de terminar o plantão, para terminar o dia com tudo
"limpo", sem mulheres em trabalho de parto para a equipe que assume
em seguida. Também acontece muitas vezes perto das 23h-0h, para que a equipe
possa ir dormir sem ser incomodada durante a noite.
Falta
de anestesista ou de obstetra: em muitas cidades pequenas
não há equipes morando no local. Então, para que não haja risco da mulher
entrar em trabalho de parto em um dia que não tem médico na cidade, agendam-se
todas as cesarianas para o dia da semana em que os médicos estão de plantão.
Falta
de especialistas: em hospitais em que se atendem nascimento de bebês de alto
risco, como não há especialistas de plantão 24/7, os médicos preferem marcar as
cesarianas para os dias e horários onde os especialistas estão presentes no
hospital, assegurando assim que o recém nascido possa ser imediatamente
atendido.
Pacotinho
cesárea no SUS: alguns médicos ainda têm a prática (ilegal) de vender
cesarianas a serem efetuadas dentro do SUS. A mulher paga direto para o médico,
em dinheiro, e ele agenda a cesárea.
Ausência
de analgesia de parto: apesar do direito legal à analgesia, na
prática as mulheres não têm direito. E diante da ameaça de um parto torturante,
com todo tipo de intervenção, e sem o direito a alívio da dor, as mulheres
preferem fugir do parto normal oferecido no SUS.
Falta
de experiência: muitos hospitais escolas, como o Hospital das Clínicas de São
Paulo, por exemplo, ostentam taxas de cesáreas próximas de 65%, ou até mais. Em
geral isso se dá pela falta de experiência da equipe em lidar com o parto
normal em situações diferenciadas como o parto de gêmeos, parto de bebês
grandes, de prematuros, de mulheres com cardiopatias ou outras doenças. Sem
conseguir aplicar as evidências diretamente, quer por medo, quer por falta de
prática, acabam recorrendo à cesariana com muita facilidade. No final os
médicos saem sabendo fazer cirurgias, mas não sabem atender um parto
fisiológico, sequer conhecem os tempos de um parto natural, sem indução.
Estrutura
dos hospitais privados: o que faz o lucro das maternidades
privadas é o agendamento prévio das cesarianas. Os hospitais não só recebem
mais dos planos de saúde por esses procedimentos como também conseguem
maximizar o uso dos leitos. Convém lembrar que a UTI neonatal e o banhos de luz
são igualmente muito bem remunerados pelos seguros e planos, de modo que a
cesariana acaba sendo, de longe, o mais lucrativo dos procedimentos de
maternidade. O parto normal ocupa salas e enfermagem por muito tempo, tem pior
remuneração pelos planos de saúde e é necessário que o hospital tenha vários
leitos disponíveis, sem ocupação, aguardando mulheres que podem ou não entrar
em trabalho de parto.
Medo
das mulheres: depois de ouvir depoimentos incontáveis de violência
obstétrica sofrida por conhecidas, muitas mulheres preferem juntar um pouco de
dinheiro e pagar por uma cesariana agendada. Apesar dos riscos, apesar da dor
da recuperação, não ter que passar por humilhação, dor, ocitocina, exposição,
vergonha, compensa qualquer sacrifício, inclusive o financeiro. Uma cesariana
hoje pode ser comprada por R$ 2.000,00 em várias cidades.
Remuneração
(falta de): os planos de saúde pagam por volta de R$ 300 reais por um
parto. Não compensa financeiramente para o médico conveniado. A solução é
marcar mais de uma cesárea num só dia, sem comprometer o consultório e a vida
privada. Alguns são honestos e já falam logo de cara. Outros vão seguindo o pré
natal com frases vagas sobre o parto e no ultrasom de 37 semanas acabam
"descobrindo" uma boa razão para marcar a cesariana para a semana
seguinte. O parto normal pode até ter uma melhor remuneração, mas não é um
prêmio de R$ 100 reais que fará um médico abdicar de sua agenda, vida familiar,
consultório, plantão, para trocar três cesarianas marcadas, por três fins de
semana dentro de um centro obstétrico.
Medo do
parto: muitos obstetras tem medo do parto normal e acham a cesariana
mais "controlável". Apesar de todas as evidências científicas, acabam
sendo contaminados e às vezes congelados por experiências traumatizantes do
passado. Não só não conseguem mais aguardar o parto, como recomendam a cirurgia
cesariana para amigas, partentes, esposa, etc..
Litigância
(medo de processo): historicamente no Brasil não se processa
um médico por um mau resultado em uma cesariana, afinal ele fez todo o
possível, usou a máxima tecnologia. No entanto qualquer resultado ruim de um
parto normal é visto imediatamente como erro médico e os processos encaminhados
ao CRM. Se um médico tira um bebê de 38 semanas e este vai para a UTI por
desconforto respiratório, a sociedade em geral acha que ele salvou o bebê. Se
um médico aguarda um parto normal e o bebê tem paralisia cerebral, não podendo
(e não há como) provar que o evento foi anterior ao parto, a culpa certamente
recairá sobre o parto.
Cultura
da cesariana: na sociedade em geral, mesmo entre pessoas de grau educacional
elevado, a cesariana é vista como algo melhor, mais seguro, normalizado,
banalizado. Nas camadas menos favorecidas, ela é vista como bem de consumo,
algo que só as mulheres ricas possuem, e que portanto deve ser melhor, mais
desejável. A cesariana está nas TVs, novelas, nas resistas para mães (Sem Culpa).
O parto normal é retratado como a opção nobre porém sofrida. Coisa de
personagem que se perde na tempestade e vai parar numa choupana. As atrizes e
famosas fazem cesariana.
Desinformação
gerando medo: as mulheres tem pouca informação sobre o processo de gravidez
e muitas ficam imersas no medo de algo acontecer. Esse medo inominável e
incomensurável também é congelante e não permite que as mulheres duvidem de
seus médicos, quando esses indicam a cesariana por "cordão enrolado",
ou que enfrentem a família/marido e escolham outro obstetra no final da
gestação. O medo é tão grande que basta a promessa de salvação feita por seu
médico para que ela entregue seu corpo e todo o seu poder a essas mãos alheias.
Inoperância
da ANS: a Agência Nacional de Saúde Suplementar, que deveria regular
as práticas erradas no setor privado simplesmente ignora o problema, ou promove
medidas tão inefetivas, que o resultado tem sido, nos últimos anos, contrário
ao desejado, ou seja, aumento das taxas de cesariana. Com programas que dão
pontos positivos, mas não encontram soluções efetivas, o fato é que os planos
de saúde não vêem qualquer razão para saírem da zona de conforto dos 90% de
cesarianas.
Conivência
do Ministério da Saúde: a força com que o M.S. lutou pela
amamentação no Brasil, e que poderia ter sido utilizada também na luta pelo
direito a um parto digno para todas as mulheres, simplesmente esmorece ou nem
chega a ser recrutada. É como se não fosse conveniente entrar em confronto com
determinados setores. Por isso as medidas são sempre amenas, de
"sedução", promessas de verba para reformas de centros obstétricos.
Apesar de que essas medidas também são bem-vindas, o fato é que não haverá
mudança significativa nas práticas sem medidas radicais do Ministério da Saúde.
Entre
outras medidas precisamos (em ordem aleatória):
1)
Segunda opinião na indicação da cesariana
2)
Plantões nos hospitais privados que permitam um parto humanizado e digno a uma
mulher que opte por usar o médico plantonista ao invés de seu obstetra do plano
(mal remunerado)
3)
Fiscalização de prontuários por comissões específicas (existem indícios de que
a indicação da cesariana muitas vezes não casa com o que foi dito à gestante
para justificar a cirurgia)
4)
Planos de saúde começarem a glosar as cesarianas sem indicação
5)
Fiscalização pelos planos de saúde das UTIs neonatais (onde parte razoável dos
bebês está internada por desconforto respiratório advindos de cesarianas
eletivas não necessárias)
6)
Programas dos planos de saúde para partos humanizados, com direito a analgesia
peridural a pedido materno.
7)
Remuneração dos planos de saúde para partos normais atendidos por enfermeiras
obstetras e obstetrizes
8)
Direito de internação de gestante para parto com enfermeiras
obstetras/obstetrizes
9) Direito
à informação clara sobre as taxas de cesariana de cada hospital e cada médico
credenciado dos planos de saúde
10)
Humanização DE FATO dos partos no SUS, aumento dos Centros de Parto Normal
geridos e atendidos por enfermeiras obstetras/obstetrizes, no paradigmas do
parto humanizado, natural, com o menor número possível de intervenções, com a
presença de acompanhante e doula (se desejado).
11)
Direito à analgesia peridural no SUS
12)
Treinamento médico adequado para o parto natural, fisiológico
13) A
ANS deve estabelecer metas para redução de cesarianas, e prazos para o
cumprimento das metas. Se os prazos não forem cumpridos, cabem multas aos
planos de saúde. A agência pode até fornecer um estudo específico para a
aplicabilidade de medidas de redução de cesariana, e propor a redução gradual:
de 92% para 70% no primeiro ano, 50% no segundo, etc. EXIGÊNCIA do plantão
presencial multiprofissional (obstetra, neonatologista, anestesiologista) e
multidisciplinar (EOs e obstetrizes) que devem ser disponibilizados em todos os
planos de saúde.
14)
Ministério da Saúde precisa se posicionar claramente a respeito do serviço
privado. A ANS gerencia planos, não prestadores privados. É preciso
gerenciamento do setor privado, tanto quanto do público. Há que se exigir resultados.
15) A
ANVISA precisa rever a RDC 36, que regulamenta funcionamento de serviços
obstétricos. A imensa maioria dos hospitais brasileiros não segue as
diretrizes. E a complexidade para os serviços de baixo risco acabam
inviabilizando que se faça uma casa de parto privada nos moldes das européias.
O custo básico inviabiliza.
(Mais
sugestões serão incorporadas ao texto, conforme recebidas pelos leitores!)
Neste
exato momento, sem medidas drásticas por nenhum setor, as taxas de cesariana no
Brasil continuarão subindo, assegurando ao nosso país o título eterno de
Campeão Mundial.
2012 -
52%"
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