"Há 15 anos tive uma
cesariana que eu não desejei. E por muitos anos eu dela me queixei. Felizmente
só encontrei à minha frente pessoas que compreenderam minha frustração. Jamais
fui julgada por isso, nem fui aconselhada a deixar esse assunto de lado. Nem
todo mundo, no entanto, tem a mesma sorte. Recebo muitas mensagens de mulheres
que choram escondidas por suas cirurgias, porque não podem mais chorar para
seus companheiros, suas mães, suas amigas.
Há, na sociedade, a
ideia de que não há porque chorar quando o resultado de uma cesariana é um bebê
vivo e (pelo menos aparentemente) saudável. Se a mãe sobreviveu e o bebê
também, só devemos comemorar, é o que pensa a nossa sociedade. A mulher que
chora depois de uma cesariana em que todos saíram vivos, muitas vezes é julgada
como egoísta, vaidosa, insensível, entre outras características negativas.
O objetivo dessa nota é
explicar porque essas mulheres choram, e como elas conseguem, ao mesmo tempo,
ser gratas pela presença de um filho saudável em suas vidas, e ao mesmo tempo
estar tristes por suas cirurgias. O que eu posso adiantar aqui é que toda
mulher que chora sua cesariana é feliz por ter um bebê. É possível
perfeitamente separar as duas facetas da história: um parto horrível e o
nascimento de uma criança maravilhosa. Só para exemplificar, imagine que você
sofra um terrível acidente de carro e o homem que te ajude a sair das ferragens
venha a ser, mais tarde, o seu companheiro. É possível ter um grande trauma do
acidente e amar profundamente esse homem? É possível, inclusive, ser grata por
esse traumático e inesquecível evento, por ele trazer essa pessoa à sua vida?
Claro que sim!
Imagine o corredor que
se preparou durante toda a vida para uma maratona, e no dia da prova mais
importante de sua vida, a Volta de Paris, para a qual inclusive ele guardou
dinheiro por muitos anos, ele sofre uma parada cardíaca e é milagrosamente
salvo pela equipe de retaguarda. É possível que ele diga que foi uma
experiência horrível, traumática, embora ele seja eternamente grato por ter
sido salvo pela equipe de resgate? Claro que sim!
Portanto, esclarecendo,
é possível ter uma grande mágoa pela cirurgia, tenha sido ela necessária ou
não, e amar o fruto dela infinitamente. A outra questão é o significado dessa
cirurgia na vida de muitas mulheres. Apesar de sermos campeões internacionais
de cesarianas, e estarmos imersos numa cultura muito arraigada de cirurgias
marcadas e "necessárias" para salvar bebês de seus perigosíssimos
cordões (sendo irônica, claro), o fato é que muitas mulheres não querem passar
por uma grande cirurgia para ter filhos.
Deixe-me explicar:
imagine que você tenha um grave problema na garganta que te impeça de engolir.
Imagine que então você tenha que passar a se alimentar por uma sonda gástrica,
por onde o alimento é introduzido em seu estômago. Veja, é o mesmo alimento que
você ia comer, mastigar e engolir, só que ele será liquefeito e injetado na
sonda, para que você não precise engolir. Para somar, olha que bênção, você
nunca mais correrá o risco de engasgar! Aliás, voltando à gratidão,
suponhamos que a técnica tenha, inclusive, salvo a sua vida. Você pode até ser
grato por ter sido salvo. Mas também é possível que você passe o resto da sua
vida lamentando não poder mais mastigar, sentir o alimento descendo pelo
esôfago, a sensação do alimento na boca, nas papilas gustativas, etc..
Ou se você não puder
mais esvaziar sua bexiga naturalmente, passe por uma cirurgia que retire a bexiga
e o resto do "equipamento", e você passa a usar uma bolsa acoplada à
perna. Afinal que diferença faz na vida de alguém não poder ir ao banheiro? Não
é até mesmo uma vantagem? Basta esvaziar a bolsa uma vez por dia em qualquer
lugar. Não tem mais infecção urinária, ficar apertado para ir ao banheiro, ter
que sair no meio do filme porque esqueceu de ir ao banheiro antes de começar a
sessão. Acabaram os seus problemas urinários.
Se você for homem,
imagine ter sua próstata retirada por causa de um câncer ou porque o médico
descobriu um jeito de ganhar bastante dinheiro retirando próstatas saudáveis.
Ainda que você tome bastante viagra para o resto da sua vida e possa ter uma
vida sexual normal, você não acha que pode ser que a cirurgia te deixe
revoltado para sempre?
A questão é que, para
muitas mulheres, não poder dar à luz naturalmente é quase como um aleijamento,
uma mutilação. A sensação de ter alguém que foi lá, abriu-a e retirou seu bebê
é absolutamente frustrante. Não sentir a passagem do bebê por dentro do corpo
pode ser, para essas mães, um débito para toda a vida. Pode ser um trauma, uma
tristeza, uma frustração incurável. Ela não está dizendo que não é grata pela
vida do filho. Ela está dizendo que a cirurgia não foi uma forma divertida e
funcional de dar à luz.
Vamos somar a isso o
fato de que a imensa maioria das mulheres operadas hoje, tanto no SUS quanto no
serviço privado, não precisavam dessa cirurgia. Dos 15% recomendados pela OMS,
já estamos em 52%. São quase um milhão de cesarianas desnecessárias no nosso
país, por ano. É uma epidemia grotesca, da qual tantas mulheres são vítimas.
Quando você encontrar uma mulher operada no SUS, tem mais de 50% de chances de
ter sido uma cirurgia evitável. Quando você conversar com uma que teve sua cesariana
no setor privado, tem quase 80% de chances dessa cirurgia ter sido
desnecessária e feita por razões comerciais e corporativas.
Portanto, só o que eu
peço, quando estiver ouvindo o desabafo dessa mulher operada, é que você esteja
com o coração aberto para compreender sua dor. Entenda que a dor dela, física e
emocional, não é frescura nem fricote. Aceite que essa dor e essa tristeza não
tem nada a ver com a alegria e o prazer que o bebê representa em sua vida. Ela
só quer que você a ouça, que a compreenda e não a julgue. Ela só quer a sua
empatia. A única coisa que você precisa responder é: "Querida, eu te
entendo. Eu entendo sua frustração. Eu sei que você desejava um parto."
Não prolongue. Não comece com "Mas pense que ..., mas pelo menos ..., mas
em compensação...". Apenas ouça e mostre sua compreensão. Um dia ela irá
se curar e você não pode percorrer esse caminho por ela.
Obs: Nesse texto não
incluí uma outra classe de frustração e trauma, que é a do parto vaginal
violento, e que pode gerar problemas físicos e emocionais dramáticos. Fiz isso
de propósito, pois o tema será tratado num texto exclusivo. Reconhecermos um
drama não significa que não estamos reconhecendo todos os outros dramas do
mundo, afinal de contas.
Obs2: Quando uma mulher
fica triste por sua cesárea, ela não está, de forma alguma, julgando a sua
cesárea ou as suas escolhas. Por favor, não se coloque na defensiva."
Ana Cristina Duarte
Nenhum comentário:
Postar um comentário