imagem retirada do site uol mulher
Há três anos eu tive o
meu primeiro filho via cesariana, agendada na ocasião pelo obstetra que me
atendia em uma situação de hipotética emergência.
Na época eu senti que
havia algo errado, mas não ousei duvidar do médico e, com o selo placenta
madura e indiscutivelmente antes do seu tempo, a minha primeira gravidez se
encerrou às recém-completadas 38 semanas com uma cirurgia no abdômen.
Eu não vivi um parto.
Até ali eu não sabia o
que era entrar em trabalho de parto, sentir uma contração. Bolsa estourar? Nem
pensar! Como são as dores? Qual é a circunstância de parir um filho? Eu não
sabia.
Os meses me levaram a
transformar o desconforto inicial de ter vivido o nascimento do meu filho de
uma forma que não atendia às minhas necessidades – de ser protagonista no maior
número possível de histórias da minha própria vida – em vontade de aprender.
Até hoje eu busco a verdade sobre as circunstâncias do nascimento cirúrgico do
meu filho, o que me fez jogar por terra todas as recomendações, explicações e
desculpas mal ajambradas do médico para encerrar a minha gravidez.
Eu aprendi muito sobre a
indústria dos nascimentos, que muitas vezes tira das mulheres a chance de terem
partos em troca de cirurgias agendadas, rápidas, assépticas (e não por isso
menos perigosas), não raro por mero capricho do médico. E muitas outras razões
as quais eu não vou detalhar agora. Três anos de muita pesquisa e envolvimento
com os maiores grupos de humanização dos nascimentos do país me dão condição
absoluta de afirmar: roubaram meu parto.
Quais são os sinais de
que o bebê está pronto para nascer? Eu não sabia. É um sangramento ou uma
pontada forte? Eu não sabia. A dilatação é rápida ou lenta? Ele teria nascido
de manhã ou à noite? Que dia? Com quantos quilos e centímetros, caso a gravidez
tivesse se encerrado nas mãos da natureza e não do médico? Eu não sabia.
Vinte meses depois, eu
paria outro menino. De parto mesmo, não cirurgia. Que veio no dia que veio e à
noite. Era maior e mais pesado do que o primeiro e não tinha nada que indicasse
que ele não poderia nascer e que eu não poderia parir.
Eu lavei minhas dores no
parto do segundo. Mas jamais terei a chance de parir meu primeiro filho de novo
nem ele de nascer.
Eu e ele nos olhamos
fundo nos olhos sempre e trocamos confidências em silêncio. Do quanto só nós
dois mesmo poderíamos ter passado por esse desafio juntos, o de superar por
meio do amor. E assim desenvolvemos formas de lidar.
Nessa lida, eis que eu
comecei a me manifestar na internet sobre isso, os partos roubados.
Manifestar-me muito, para quem quiser ouvir. Quase compulsiva mesmo.
A cada linha escrita sobre
o tema, um tanto de comemorações, outro de lágrimas, muitas aflições e
julgamentos. De uma forma geral, sempre me senti mais ajudando outras mulheres
–que como eu têm a necessidade de protagonismo e respeito à fisiologia do corpo
feminino, ansiosas também por buscarem uma outra chance para viver um parto– do
que desrespeitando ou diminuindo aquelas que não compartilham das mesmas
necessidades. Muitas delas, independentemente do ponto de vista, felizes ou não
com o desfecho dos nascimentos dos filhos, vítimas de partos roubados.
Uma cesariana não é um
parto. É um nascimento. Pode ser lindo, cheio de emoções certamente. Coloca-nos
de frente com aquele ser que nos habitou por meses, podemos olhar aqueles olhos
pela primeira vez. É indescritível a sensação de conhecer seu filho,
independentemente do como. Mas isso não é um parto, mulheres que adotam seus
filhos têm seus próprios rituais, igualmente mágicos, de conhecer seus filhos.
E eles definitivamente não são partos.
Não são esses partos,
que se pode roubar.
O parto é o processo, o
rito, o portal de transição natural do corpo e da alma. Que por meio da dor do
amor transforma a mulher em mãe, a gestante em lactante, engorda a família e
emagrece a barriga – sem facas, sem pontos, sem grandes procedimentos. No
parto, a criança é expelida do corpo da mãe, por seus esforços em conjunto, por
meio da vagina, exatamente por onde entrou. Existem mil maneiras de parir,
coisa que também não vou me alongar aqui, mas nenhuma delas envolve retirar a
criança pela barriga.
As situações de
nascimentos dos meus filhos não interferem naquilo que sinto por eles. Mas falo
sem nenhum pudor que amei mais meu parto do que amei minha cirurgia cesariana.
Que me senti mais mulher parindo do que me senti mulher ao ser operada pelo obstetra.
Que vivenciei uma maternidade mais adequada aos meus valores no ritual que me
conectava com meu corpo e com o meu filho, com nossos desejos primitivos, com
silêncio, penumbra e ternura, do que no ritual cirúrgico.
Ainda que tudo isso
pareça muito factual, na medida em que é a minha história, é margem para um
debate sem fim: muitas mulheres que tiveram seus filhos via cirurgia cesariana
sentem-se desconfortáveis com os meus depoimentos, em diferentes intensidades.
Algumas sentem-se agredidas, agridem de volta. Outras evitam o assunto,
preferem não debater. Outras insistem que as experiências de parto e cirurgia
são as mesmas e se enveredam para a seara da competição, onde hipoteticamente
uma mãe que pariu um filho seria melhor em seu exercício de maternidade do que
aquela que o teve por via cirúrgica. Todas as formas exprimem a mesma coisa,
são mulheres lidando com algo que simplesmente nenhuma delas aceita: ter seu
parto roubado.
Seja pelo modelo
obstétrico nacional que transformou o nascer em uma linha de montagem
hospitalar, seja pelos discursos das ativistas, insistindo que cirurgia não é
parto.
Ninguém gosta de ter seu
parto roubado."
Anne Rammi
Fonte: mulher.uol
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